quarta-feira, 31 de julho de 2013

Lombada

- Vai agora!

Quando jovens, desenvolvemos uma espécie de instinto de eternidade que nos ajudar a pensar na possibilidade de uma morte apenas após a queda dos níveis de adrenalina no corpo, geralmente após momentos de tensão premeditada (apenas a tensão) por atitudes inconsequentes. Porque nada vai acontecer a você, nada. Pessoas só morrem quando velhas.

- Vai, deita logo!

Risos. Soluçantes.

- Põe a garrafa em cima dele, sô!

E os passos trôpegos e vacilantes o cercavam como a uma fogueira num rito indígena, ali, em plena Avenida do Contorno, início da Avenida Nossa Senhora do Carmo. Ele deitou, como requisitado, sem contestar - rindo inclusive -, pois sabia que era a sua vez. Primeiro ajoelhou-se com cuidado, a calça sentindo o calor acumulado e a aspereza do asfalto. Depois, pôs a garrafa de cerveja de lado e apoiou as mãos no chão, sentindo o negrume da borracha que marcava a pista. Rindo muito. Depois, refez o movimento para deitar-se de costas na faixa do meio de três.

- Põe logo a garrafa e sai!

Entre os que o rodeavam, o mais alto deles assumiu a responsabilidade. Equilibrou a garrafa sobre o peito do que deitava, ambos prendendo a respiração e segurando seus risos galopantes. Voltaram-se correndo em direção à marquise da loja da esquina, a não mais de dez metros de distância do corpo. Riam e gritavam para o que lá ficara, não podendo responder para não derrubar a garrafa em seu peito. Semana passada, o gordo deixou a garrafa cair no último instante e pagou sua penitência, tanto que não veio hoje.

Ao longe, ouviram o ruído amaciado do motor subindo a avenida. As luzes começavam a despontar, criando um halo que anunciava sua aproximação. Ao surgir em sua forma completa, os faróis de halogênio eram fortes a ponto de impedir a indentificação do modelo. Daquela distância e em alinhamento quase frontal ao carro, não era possível mensurar sua velocidade com precisão. Mas era veloz. Agora passava em frente ao Pátio e sua luz já delineava os contornos do corpo à sua frente. Usava exatamente a faixa do meio. 80 metros. Não desacelerou. Os sorrisos mantinham-se numa tensão espetacularizada. Era o fascínio exercido pelo perigo. 50 metros. Acelerou. Era um carro branco, esporte. Os sorrisos paralisaram e as sobrancelhas arquearam. Antes que balbuciassem alguma coisa, ouviram o baque da garrafa caindo no asfalto e rolando para o lado e a cabeça daquele lá deitado virando-se na direção do carro. Quando seu braço esquerdo fez menção de apoiar-se no solo para alavancar seu corpo em qualquer direção, sentiu uma rápida pancada rachando o seu crânio e atirando-o de volta ao solo, rebatendo com força e deixando escapar algo de massa encefálica ao mesmo tempo em que os pneus marcavam o corpo com seus sulcos Pirelli e um som surdo que espalhava suas vísceras esmagadas em seu abdomem planado. Tão alto foi o baque que o som das costelas quebrando, misturado ao ronco do motor 2.0, não se fez ouvir. Mantendo a mesma velocidade, o carro seguiu seu curso sem se alterar, sua presença desaparecendo ao longo da avenida.

Na esquina, os três jovens não conseguiam esboçar reação alguma além da tremedeira que soltava as garrafas de suas mãos. O corpo permaneceu no ponto original, talvez movido alguns centímetros na diagonal. O sangue paulatinamente ia formando uma poça que escorria em direção à Nossa Senhora. Imóvel. Tremiam como sob um frio abaixo de zero.

O gordo, ainda muito machucado e com seu ânus dilacerado, não gostara da penitência. Talvez preferisse que essa houvesse sido a sua vez. Acelerou ainda mais ao cruzar a Afonso Pena, sincronizando com a passagem de um 62 que retornava à garagem. Lombada era o nome da brincadeira.

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